O Risco de Desumanizar o Diagnóstico
Com o avanço acelerado da inteligência artificial na medicina, é inevitável nos perguntarmos: o que estamos ganhando e o que podemos estar perdendo?
A IA tem se mostrado uma ferramenta extremamente sensível, capaz de captar até o mais sutil dos sinais. Mas essa sensibilidade, muitas vezes, vem à custa da especificidade: ela levanta
suspeitas demais, muitas delas infundadas. Isso pode gerar uma cascata de falsos positivos, exames desnecessários, tratamentos supérfluos e, sobretudo, ansiedade no paciente. A
medicina precisa de precisão, não de paranoia.
Outro risco é o excesso de possibilidades diagnósticas oferecidas de forma bruta. A IA tende a listar uma série de hipóteses, de uma simples virose até uma neoplasia avançada, sem qualquer mediação clínica ou emocional. Mas o paciente não precisa e muitas vezes não
quer saber de tudo. Saber demais pode ser angustiante, paralisante, violento. A medicina não é só sobre informar, é também sobre cuidar do modo como se informa.
E é aí que a IA mostra sua maior limitação: ela não prepara o paciente para a notícia. Não sente o peso do silêncio, não mede o impacto de uma frase, não pergunta se a pessoa está
pronta para saber. Ela não reconhece que há um momento certo e um jeito certo para comunicar o que pode mudar a vida de alguém.
Além disso, a popularização da IA pode alimentar uma cultura de prevenção quaternária distorcida: aquela em que a medicina passa a causar mais dano que benefício, ao fomentar exames excessivos e vigilância constante. A pessoa deixa de viver para virar uma eterna
paciente em potencial, refém de sintomas e possibilidades.
Outro problema importante é o viés nos dados que alimentam esses sistemas. A IA aprende com grandes bases de dados que, em sua maioria, vêm de países ricos, com populações
brancas e com acesso a saúde privada. Isso significa que os diagnósticos e decisões feitas pela
IA podem errar mais com pessoas negras, indígenas, pobres, trans ou com doenças
negligenciadas, reproduzindo desigualdades que a medicina deveria combater, e não reforçar.
Além disso, existe um perigo sutil: a falsa sensação de infalibilidade. A aura de tecnologia faz parecer que a IA “sabe mais”, levando médicos e pacientes a confiarem demais nas
respostas da máquina, mesmo quando não fazem sentido clínico. Isso pode minar o pensamento crítico e enfraquecer o julgamento humano, essencial para a prática médica.
Outro ponto crítico é a despersonalização do cuidado. A IA tende a padronizar o atendimento, transformando pessoas em casos, sintomas em códigos, vivências em estatísticas. A medicina, ao contrário, exige escuta, empatia, subjetividade. Ela é feita de histórias e não de bancos de dados.
E quando falamos em dados, surge outra questão sensível: quem está protegendo os dados do paciente? Muitos sistemas de IA são desenvolvidos por empresas privadas que operam com interesses comerciais. Há risco real de vazamento, uso indevido e mercantilização das informações de saúde, o que compromete a autonomia e a intimidade do paciente.
Do ponto de vista do trabalho médico, a popularização da IA pode reforçar discursos que pregam a substituição do profissional de saúde. Isso ameaça precarizar o ofício médico, reduzindo-o a um executor de protocolos algorítmicos. Mas medicina não é algoritmo, é vínculo, presença, decisão partilhada.
E se a IA errar? Quem é o responsável? O médico que seguiu a sugestão? A empresa que programou o sistema? O hospital que implementou? A questão da responsabilidade ética e legal diante dos erros da IA é urgente e ainda está em aberto.
Por fim, talvez o mais grave: a IA ignora a medicina narrativa. Ela não escuta histórias, não entende o contexto, não reconhece que um mesmo sintoma pode ter significados
completamente diferentes em pessoas diferentes. A IA trata dados, mas não compreende sofrimento.
A inteligência artificial pode, sim, ser uma ferramenta poderosa desde que usada com ética, senso crítico e humanidade. O problema não é a IA em si, mas o modo como escolhemos usá-
la. Que ela sirva à clínica, e não substitua a escuta. Que complemente o olhar do médico e nunca o apague.
Porque no fim das contas, nenhuma máquina consegue olhar nos olhos de alguém e dizer: “eu estou aqui com você”.